sábado, 15 de junho de 2013

Ano 2050

há muito que me morreram os pássaros, aqueles que se aninhavam nos meus beirais em profilaxias de beijos. 
hoje já só há o canto triste e mole das cegonhas que morrem ao nascer, pois já nem meninos entregam. esses nascem-nos dos ventres inchados.
hoje já só há borboletas em casulos de memória. e os ósculos às flores morreram aí. 
hoje já só há encanto de ovelhas em documentários de fim de tarde. a lã já não é pura-virgem, é entrelaçada em fios sintéticos de dedos cansados. 
os rios secaram. os mares estão mais pequenos. as cidades cresceram. as aldeias perecem em óleos sobre tela expostos em museus de luxo. 
há muito que me morreram os pássaros, os que me vinham debicar às janelas. e eu, por dentro delas, existia em sangue e vida.
hoje já só há memória no lugar do tudo. o tudo que eu não conquistei, porque já só existo em sombra, ou talvez naquele pedaço que me carregas. sabes porquê? porque há muito que me morreram os pássaros. 

sábado, 8 de junho de 2013

Avó dos olhos verdes

tinhas no olhar um rir de menina, um olhar onde desaguavam tantos mares.
dizias que, quando eras nova, todos te gostavam. e eu acreditava-te. diziam, também, que tinhas umas belas pernas, as mesmas que, cedo, te iriam fraquejar.
foste avó-mãe quando o outro regaço me faltou. e faltou. tantas vezes. foste afago. foste afeto. foste o deus-sol que me acariciou os dias.
as avós são duas-vezes-mãe, ouço. tu foste mãe. sempre.
hoje choro-te. choro-nos. e eu não sei onde estás: se no aspergir de uma flor, se no canto da noite, se na luz de uma estrela, se num rir de criança. ou se nisto tudo. 
porquê, avó? porque me morreste sabendo (te) (nos) que o amor é infinito?
hoje precis(o)ava-te aqui. que os teus dedos penteassem os nós dos meus cabelos. que o teu abraço me enlaçasse num refúgio. mas tu morreste(me). e de ti já só tenho o olhar verde a rir e a tua voz pequenina a pedir para te lavarem os pés, porque as tuas pernas, que um dia foram poesia de (en)canto, te não deixam.
porquê, avó? porque me morreste se sabias que (me) (nos) fazias falta?


sábado, 1 de junho de 2013

Eu-Criança


Quando eu era criança o mundo era cor-de-rosa. E azul. E verde. E amarelo. E violeta. Bem, na verdade era um arco-íris sempre a ser. Menos para os adultos, que eram daltónicos e queriam que crescêssemos à força. E crescemos. Teve de ser. Faz-te à vida, ouvia em todas as direções, como se ser criança fosse uma guerra. 
Quando eu era criança a vida era a fingir e os olhos riam como palhaços. Menos à hora do dormir, quando os sonhos do dia se transformavam em trevas finas de escurecer e o quarto, mergulhado na penumbra, desenhava nas paredes pesadelos de monstros que não existiam. Só em nós.
Quando eu era criança as horas andavam para trás. Era como se os relógios vivessem ao contrário, de pernas para o ar. Contudo, não tínhamos relógios. Nem de sol. Do sol, só o afago do quente-morno dos seus braços.
Quando eu era criança os brinquedos que não tive sorriam-me das montras citadinas. Eu parava nos passeios e ficava a imaginar. Apenas. Que, naquele tempo, os brinquedos eram apenas uma ilusão. E à noite, por entre o acolchoado dos lençóis, inventava nomes às bonecas-filhas que tinham sido dadas para adoção daquelas lojas que à noite se fechavam. E as bonecas choravam o abandono. E eu chorava com elas. 
Quando eu era criança já não era criança. Cresceram-me rugas nos olhos. Os cabelos esbranquiçaram. As pernas fraquejam-me. O coração chora a saudade. Hoje já sou só criança lá, onde aconteceu. E só quando choro me liberto de ser criança. Esvoaçam as memórias. Viro o relógio de pernas para o ar mas ele, teimosamente, volta ao seu lugar, qual íman do tempo.
Quando voltar a ser criança serei aquilo que não fui. Talvez um palhaço a rir. Talvez um saltimbanco de circo. Talvez apenas uma memória. Sim, uma memória, daquelas que me espreitam por trás da porta e dizem, anda, vem brincar, tens tempo de crescer. E serei feliz como, não obstante, fui.