segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Carta para o meu filho

filho, escrevo-te do lá-longe, onde não há mantas nem cachecóis, nem entardeceres de praia ao sol-pôr. morri-te. e deixo-te estas linhas com as palavras que não te disse, ou, se disse, já as esqueci.
hoje lembrei-me de ti. na verdade, lembro-me todos os dias, não sei bem como, pois morri-te. deve existir um cérebro de mãe que nunca morre. foram tantas as coisas que lembrei que não sei por onde começar. rias. e os teus olhos enchiam-se de luz. 
a chuva fere-me o telhado em gotas de pinga-amor. tu dormes, imune à chuva, imune ao mundo lá-fora. 
doem-me as mãos, aquelas que te amparam o choro. doem-me os olhos do cansaço, das noites insones, do ter cá-dentro um amor maior que é o teu.
sabes, a vida é feita de adendas, hora-a-hora, dia-a-dia, como se fosse uma manta feita a retalhos. no fim, tudo se conjuga, tudo faz sentido, menos a morte. mas disso não te falo, não agora que ainda é o começo.
anda, senta-te aqui, vamos falar de amor, daquilo que nos une sem palavras, sem quês ou porquês, simplesmente porque sim. às vezes há metafísica nas palavras que se fecha numa hermenêutica que ninguém entende. sabes, só o sentir é bom. e os sonhos não são senão a poesia da alma. por isso, sonha, faz de ti o poeta da tua vida, o artesão do teu caminho. e não deixes que te expliquem todos os porquês. só o sentir já é bom.
dói-me o corpo pelo peso dos anos. já me falta pouco, bem sei. quero deixar-te presa ao peito a saudade. quero imprimir em tons sépia um abraço persistente. quero que te lembres, sobretudo, quando eu for velhinha e os olhos me fugirem para as mãos cansadas, que o amor é a única sedução possível.
hoje sei que não passo de um vácuo de memória, de um resto de ser. e eu espero que tu sejas poeta-canção.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A bailarina e a chávena de chá

era uma vez todas as vezes. esta era para a caixinha de música. a caixinha de música tinha uma existência simples, servia apenas para te embalar. mi, lá, dó, uma cadência de notas para encantar petizes. às vezes calava-se e tínhamos de lhe dar corda. então, lá se levantava a bailarina, com os braços em pose a girar sobre si mesma. e o seu canto era o de pássaros em beirais de telhados de zinco. 
e eu bebo o chá nas tardes mornas de outono. e o teu entretém a adormecer, com os olhos da bailarina cansados a pesarem-lhe no rosto. e ela lentamente cai para se deixar dormir. é o embalo que lhe dói. 
é tarde, é já muito tarde. o chá arrefeceu na chávena esquecida no vão da janela. dói-lhe o cheiro de ser chá. a bailarina deixou de dançar, a caixinha deixou de tocar e os teus braços procuram outro embalo, talvez o da chuva que começou a cair. dói-me a mim também qualquer coisa, penso que o teu choro. acorro(te) num ímpeto de abraço. pego(te) e beijo(te) as faces coradas. ris. e a caixinha de música a necessitar de afeto. é o embalo que lhe dói.
esta é a história da tua caixinha de música, aquela que te adormece em sonhos bons, aquela que te desperta para um acordar de beijos. sabes, não a deixes morrer, ainda que o embalo lhe doa.
mas um dia a caixinha de música não tocou. pensávamos que era da pilha, mas não. a música sepultada num funeral por vir. a bailarina prostrada aos pés do piano com as pernas partidas. é um dó vê-la. a sua voz transformada num choro inundado de lágrimas. a caixinha de música morreu, como morrem todas as coisas. fim.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Outono

o outono está a chegar. sinto-o pelo frio rasante nos dedos. sinto-o pela parca luz que me entra pelas janelas. há já um cheiro a castanhas na saudade, embebidas em licor de jeropiga. 
o chão atapetado de verde sucumbe. os caminhos ir-se-ão fartar de cores. as aves migrarão de lugar à procura de outros ninhos: os céus encher-se-ão de asas. 
os figos pingam em mel das árvores prenhes. alguns secaram ao sol de verão e jazem no chão, mortos. outros, envoltos nos bicos de pássaros, saciam-lhes a fome. 
tenho medo que o tempo passe. tenho medo que cheguem outros outonos e que tu partas sem eu te conhecer. enchem-se-me os bolsos de saudade daquilo que ainda não somos. é como se eu vivesse por antecipação. não quero pensar nisto, mas tenho medo que tu me vás. fica, digo-te então em surdina. e agarras tão firme a minha mão com os teus dedos de pequeno encanto. 
mas hão de chegar outros outonos. terei rugas de te chorar pequeno, quando olhar lá para trás. sentar-me-ei à janela a tecer a memória. vou pegar-te uma e outra vez ao colo, mas tão-somente no beco da saudade. ver-te-ei a rir, a chorar, limpar-te-ei as lágrimas num afago. não. não me agradeças. não tens de agradecer. eu sou a tua mãe e mãe escreve-se com amor.
por ora olho-te demoradamente. sem tempo. sem pressa. no entanto, pergunto-me: e eu? e tu? que há de ser de nós?

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O amor

Os outonos já não são iguais. As manhãs que orvalham a terra são mais frescas, mais calmas. Apesar de ser tarde. As sementes há muito que desabrocharam e o milho restolha nos campos mornos. Do verde ao dourado foi um instante, um lapso de tempo. 
Tu ainda dormes. A tua respiração contínua abranda uma dor que em mim fica todos os fins de tarde, quando o dia morre. 
Bebo um café apressadamente, pois os teus braços chamam-me. Ris-me com o olhar. Falas-me com o sorriso que ainda não dás. Mas que eu vejo. Ou sonho. 
Há um silêncio que nos fere. Digo-te palavras que não entendes e olhas-me de soslaio, como se eu fosse louca. E sou. De tanto te amar!

sábado, 15 de junho de 2013

Ano 2050

há muito que me morreram os pássaros, aqueles que se aninhavam nos meus beirais em profilaxias de beijos. 
hoje já só há o canto triste e mole das cegonhas que morrem ao nascer, pois já nem meninos entregam. esses nascem-nos dos ventres inchados.
hoje já só há borboletas em casulos de memória. e os ósculos às flores morreram aí. 
hoje já só há encanto de ovelhas em documentários de fim de tarde. a lã já não é pura-virgem, é entrelaçada em fios sintéticos de dedos cansados. 
os rios secaram. os mares estão mais pequenos. as cidades cresceram. as aldeias perecem em óleos sobre tela expostos em museus de luxo. 
há muito que me morreram os pássaros, os que me vinham debicar às janelas. e eu, por dentro delas, existia em sangue e vida.
hoje já só há memória no lugar do tudo. o tudo que eu não conquistei, porque já só existo em sombra, ou talvez naquele pedaço que me carregas. sabes porquê? porque há muito que me morreram os pássaros. 

sábado, 8 de junho de 2013

Avó dos olhos verdes

tinhas no olhar um rir de menina, um olhar onde desaguavam tantos mares.
dizias que, quando eras nova, todos te gostavam. e eu acreditava-te. diziam, também, que tinhas umas belas pernas, as mesmas que, cedo, te iriam fraquejar.
foste avó-mãe quando o outro regaço me faltou. e faltou. tantas vezes. foste afago. foste afeto. foste o deus-sol que me acariciou os dias.
as avós são duas-vezes-mãe, ouço. tu foste mãe. sempre.
hoje choro-te. choro-nos. e eu não sei onde estás: se no aspergir de uma flor, se no canto da noite, se na luz de uma estrela, se num rir de criança. ou se nisto tudo. 
porquê, avó? porque me morreste sabendo (te) (nos) que o amor é infinito?
hoje precis(o)ava-te aqui. que os teus dedos penteassem os nós dos meus cabelos. que o teu abraço me enlaçasse num refúgio. mas tu morreste(me). e de ti já só tenho o olhar verde a rir e a tua voz pequenina a pedir para te lavarem os pés, porque as tuas pernas, que um dia foram poesia de (en)canto, te não deixam.
porquê, avó? porque me morreste se sabias que (me) (nos) fazias falta?


sábado, 1 de junho de 2013

Eu-Criança


Quando eu era criança o mundo era cor-de-rosa. E azul. E verde. E amarelo. E violeta. Bem, na verdade era um arco-íris sempre a ser. Menos para os adultos, que eram daltónicos e queriam que crescêssemos à força. E crescemos. Teve de ser. Faz-te à vida, ouvia em todas as direções, como se ser criança fosse uma guerra. 
Quando eu era criança a vida era a fingir e os olhos riam como palhaços. Menos à hora do dormir, quando os sonhos do dia se transformavam em trevas finas de escurecer e o quarto, mergulhado na penumbra, desenhava nas paredes pesadelos de monstros que não existiam. Só em nós.
Quando eu era criança as horas andavam para trás. Era como se os relógios vivessem ao contrário, de pernas para o ar. Contudo, não tínhamos relógios. Nem de sol. Do sol, só o afago do quente-morno dos seus braços.
Quando eu era criança os brinquedos que não tive sorriam-me das montras citadinas. Eu parava nos passeios e ficava a imaginar. Apenas. Que, naquele tempo, os brinquedos eram apenas uma ilusão. E à noite, por entre o acolchoado dos lençóis, inventava nomes às bonecas-filhas que tinham sido dadas para adoção daquelas lojas que à noite se fechavam. E as bonecas choravam o abandono. E eu chorava com elas. 
Quando eu era criança já não era criança. Cresceram-me rugas nos olhos. Os cabelos esbranquiçaram. As pernas fraquejam-me. O coração chora a saudade. Hoje já sou só criança lá, onde aconteceu. E só quando choro me liberto de ser criança. Esvoaçam as memórias. Viro o relógio de pernas para o ar mas ele, teimosamente, volta ao seu lugar, qual íman do tempo.
Quando voltar a ser criança serei aquilo que não fui. Talvez um palhaço a rir. Talvez um saltimbanco de circo. Talvez apenas uma memória. Sim, uma memória, daquelas que me espreitam por trás da porta e dizem, anda, vem brincar, tens tempo de crescer. E serei feliz como, não obstante, fui.