sábado, 1 de junho de 2013

Eu-Criança


Quando eu era criança o mundo era cor-de-rosa. E azul. E verde. E amarelo. E violeta. Bem, na verdade era um arco-íris sempre a ser. Menos para os adultos, que eram daltónicos e queriam que crescêssemos à força. E crescemos. Teve de ser. Faz-te à vida, ouvia em todas as direções, como se ser criança fosse uma guerra. 
Quando eu era criança a vida era a fingir e os olhos riam como palhaços. Menos à hora do dormir, quando os sonhos do dia se transformavam em trevas finas de escurecer e o quarto, mergulhado na penumbra, desenhava nas paredes pesadelos de monstros que não existiam. Só em nós.
Quando eu era criança as horas andavam para trás. Era como se os relógios vivessem ao contrário, de pernas para o ar. Contudo, não tínhamos relógios. Nem de sol. Do sol, só o afago do quente-morno dos seus braços.
Quando eu era criança os brinquedos que não tive sorriam-me das montras citadinas. Eu parava nos passeios e ficava a imaginar. Apenas. Que, naquele tempo, os brinquedos eram apenas uma ilusão. E à noite, por entre o acolchoado dos lençóis, inventava nomes às bonecas-filhas que tinham sido dadas para adoção daquelas lojas que à noite se fechavam. E as bonecas choravam o abandono. E eu chorava com elas. 
Quando eu era criança já não era criança. Cresceram-me rugas nos olhos. Os cabelos esbranquiçaram. As pernas fraquejam-me. O coração chora a saudade. Hoje já sou só criança lá, onde aconteceu. E só quando choro me liberto de ser criança. Esvoaçam as memórias. Viro o relógio de pernas para o ar mas ele, teimosamente, volta ao seu lugar, qual íman do tempo.
Quando voltar a ser criança serei aquilo que não fui. Talvez um palhaço a rir. Talvez um saltimbanco de circo. Talvez apenas uma memória. Sim, uma memória, daquelas que me espreitam por trás da porta e dizem, anda, vem brincar, tens tempo de crescer. E serei feliz como, não obstante, fui.

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